domingo, 8 de junho de 2008

Resposta errada

Clamor público causado pela morte de acrobata faz polícia apresentar soldados que não estavam no local do crime
Jaciara Santos - Correio da Bahia

Apresentados pela Secretaria de Segurança Pública como assassinos do trapezista Ricardo Matos dos Santos, 20 anos, e do assaltante Robson de Souza Pinho, 19, o “Sapo”, os soldados PM José Roberto dos Santos, 40 anos, Marco Antonio Carvalho Santa Bárbara, 41, e Adilson José da Silva Souza, 39, todos lotados na 39ª Companhia Independente, podem ser inocentes. Todos têm provas documentais e testemunhais de que, no momento do duplo homicídio _ por volta das 17h do dia 22 de janeiro _ estavam a pelo menos 2,5km do local do crime, a quadra de esportes da Invasão do Bate-Facho, na Boca do Rio. Há suspeitas de que o equívoco tenha por objetivo acobertar o envolvimento no caso de um graduado oficial da corporação.

As investigações que resultaram no indiciamento dos três praças foram conduzidas pelo extinto Grupo de Repressão aos Crimes de Extermínio (Gerce). Coordenadora da unidade à época, a delegada Andréa Gonçalves d’Oliveira admite que o trio foi incriminado com base apenas em provas testemunhais (veja entrevista na pág. 11). Eles teriam sido vistos no local por pessoas que ajudaram a confeccionar seus retratos falados e viriam a reconhecê-los no dia da prisão, segundo ela.

Esse reconhecimento valeu aos soldados, além da desmoralização pública e de 56 dias de prisão em caráter provisório, o indiciamento em inquérito policial no Gerce, um processo administrativo disciplinar no âmbito da corporação e outros danos ainda não mensurados. Apesar de libertados do Batalhão de Choque no dia 13 do mês passado, mediante habeas-corpus da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia, eles continuam respondendo pelo crime. “E estão ameaçados de sofrer um flagrante erro judiciário”, adverte a advogada Maristela Abreu, 40 anos, defensora do trio.

Procurados, os soldados preferiram não conceder entrevista, alegando impedimento funcional. Atualmente, eles desempenham serviço administrativo, fora das ruas. Uma medida, aliás, que tem o caráter de punição e é sempre aplicada a policiais policiáveis. Mesmo que, pelo menos nesse caso, Adilson, José Roberto e Santa Bárbara façam por merecer o benefício da dúvida. Afinal, por uma elementar lei da física, eles não poderiam estar em dois lugares ao mesmo tempo.

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Acusados apresentam álibis

Os álibis são convincentes. Na hora do crime, o soldado José Roberto fazia seu “bico” como motorista da Empresa Praia Grande. Para matar os dois rapazes, teria que abandonar o ônibus número de ordem 4935, linha Paripe-Pituba, num ponto qualquer do itinerário, trocar rapidamente o uniforme de trabalho por bermuda e camiseta, correr até a Boca do Rio, executar as vítimas e reassumir a direção do coletivo. Tudo sem chamar a atenção dos passageiros.

Foi por acreditar na inocência de José Roberto que o gerente geral da Praia Grande, Luiz Carvalho, 40, se dispôs a fornecer documentos que descartam sua presença na cena do crime. Fazem parte da documentação, por exemplo, o relatório de operação do veículo _ o ROV, registro eletrônico da jornada diária de um rodoviário _ e um atestado de bom comportamento. “Acho que houve precipitação por parte da polícia”, opina o executivo.

Também acusado, o soldado Marco Antonio Santa Bárbara estava na Prazeres Pizza Bar, pizzaria situada na Praia do Corsário, onde atuava como segurança. Além do proprietário da casa, que forneceu uma declaração por escrito, pelo menos outras 20 pessoas podem confirmar: ele se encontrava a cerca de 2,5km da quadra da Invasão do Bate-Facho, quando Ricardo e Robson foram mortos.

Integrante do serviço de inteligência da PM (P-2) e com 14 anos de corporação, Santa Bárbara registra na ficha funcional seis elogios por atos de bravura. Atualmente, entretanto, anda cabisbaixo e “chora por qualquer coisa”, revela um irmão.

Brinco dourado – O terceiro acusado é o soldado Adilson José da Silva Souza, morador da Península Itapagipana. No provável horário do assassinato, ele estava no Politeama, centro da cidade, onde fazia serviço extra na Operação Corredor Turístico de Salvador. Com uma ficha funcional sem mácula e valorizada por dois elogios – em 21 de setembro de 2005 e 1º de setembro de 2006 – ele não pára de se perguntar o porquê de ter sido preso.

E se não tivesse gerado conseqüências dramáticas, o reconhecimento de Adilson na sede do Gerce, poderia ser taxado de hilário. Segundo a testemunha que o identificou, o policial “tem cerca de 1,90m de altura e usava um brinco dourado, pequeno, tipo africana em uma das orelhas”. Com a mediana estatura de 1,73m e de compleição atarracada, ele jamais usou esse tipo de adereço, o que poderia ser constatado com um simples exame de corpo de delito dos lobos das orelhas.

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Secretário apresentou trio

Com menos de um mês à frente da SSP-BA, o secretário César Nunes terminou participando da entrevista coletiva em que, na tarde de 19 de março, os soldados Santa Bárbara, Santos e Silva Souza foram apresentados à imprensa. Com base nas informações que chegaram às suas mãos, disse à época que as investigações haviam contado “com a participação de moradores da Boca do Rio”, revoltados com a brutalidade do crime.

O secretário não sabia, certamente, que o único elemento de prova contra os acusados era um reconhecimento feitos às pressas poucas horas antes. “Um reconhecimento, aliás, claramente tendencioso”, acusa a advogada Maristela Abreu, defensora dos praças: “Eles pegaram os policiais, de banho tomado, com roupas limpas e arrumados, e os colocaram ao lado de presos sujos e desarrumados retirados da cela”, relata. “Quem você acha que as testemunhas iriam apontar como policiais militares?”, indaga.

Entusiasmado por estar dando resposta à sociedade num crime que tanta repercussão obteve, o secretário confiou nas informações que lhe foram repassadas. Mal sabia que tudo poderia não passar de um grande equívoco.

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Cronologia do caso

20 de janeiro

Cinco amigos passeiam de bicicleta no Parque Metropolitano de Pituaçu. Por volta das 6h, são atacados por quatro assaltantes, dois dos quais reconhecidos como os ladrões apelidados “Sapo” e “Nenga”. Os bandidos roubam duas bicicletas importadas, um telefone celular, uma câmera fotográfica e um relógio. As vítimas registram o assalto na 9ª DP (Boca do Rio).

22 de janeiro

O acrobata Ricardo Matos dos Santos, 20 anos, ex-aluno da Escola de Arte Circense Picolino, joga bola com amigos na quadra da invasão do Bate-Facho, na Boca do Rio. Moradores da área, “Nenga” e “Sapo” também estão no “baba”. Por volta das 17h, quatro homens chegam ao local e atiram contra os jogadores. Ricardo e “Sapo” são atingidos mortalmente. Socorridos por PMs uniformizados ao Hospital Geral Roberto Santos, no Cabula, os dois morrem no trajeto. Os assassinos fogem.

24 de janeiro

Protestos marcam o sepultamento de Ricardo no Cemitério de Quinta dos Lázaros (foto). Familiares, amigos e representantes de várias entidades participam da cerimônia. Após o enterro, novo foco de revolta, dessa vez na Avenida Paralela, onde os manifestantes param o trânsito. A manifestação é dissolvida de forma pacifica pelo major Pedro Jorge Fonsêca, comandante da 48ª Companhia Independente (CAB/Sussuarana). A Secretaria da Justiça pede rigor na investigação.

25 de janeiro

Grupo Especial de Repressão a Crimes de Extermínio (Gerce) passa a investigar o caso em paralelo com a
9ª Delegacia (Boca do Rio).

18 de fevereiro

Delegada Andréa d’Oliveira, titular do Gerce, pede a prisão temporária dos soldados Adilson Silva Souza, José Roberto dos Santos e Marco Antônio Santa Bárbara como autores materiais do duplo homicídio. As investigações transcorrem sob sigilo.

18 de março

O Correio da Bahia publica, com exclusividade, reportagem dando conta de que o crime teria sido praticado por policiais militares a mando de um oficial PM e revela que o caso está relacionado ao assalto no Parque de Pituaçu em 20 de janeiro.

19 de março

Acúpula da Secretaria de Segurança Pública apresenta os soldados Adilson, José Roberto e Santa Bárbara como autores do crime. Também acusados de envolvimento em grupo de extermínio, os três são recolhidos ao Batalhão de Choque, em Lauro de Freitas.

1º de abril

Defesa pede revogação da temporária.

3 de abril

Promotora de Justiça Armênia Cristina Santos (foto) oferece parecer contrário à revogação de temporária.

9 de abril

Delegada Clelba Regina Teles, do Gerce, pede prorrogação da prisão temporária dos soldados.

29 de abril

Juiz Cássio Miranda (foto), da 1ª Vara do Júri, informa o Tribunal de Justiça sobre as razões que o levaram a prorrogar a temporária.

13 de maio

Soldados Santa Bárbara, Adilson e José Roberto são libertados, em cumprimento a habeas-corpus da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia, que tem como relator o desembargador Abelardo Virgínio de Carvalho.

21 de maio

Primeira audiência do processo administrativo disciplinar que os soldados respondem na Corregedoria. A próxima está marcada para o dia 17 deste mês.

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Promotora de Justiça detecta contradições

Remetido ao Ministério Público Estadual como concluído, o inquérito policial foi parar nas mãos da promotora de Justiça Isabel Adelaide de Andrade Moura, coordenadora do Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial (Gacep). Mas, por ter detectado nos autos “contradições entre as partes”, ela o devolveu à Delegacia de Homicídios, especializada que absorveu os trabalhos do extinto Gerce.

Como Isabel Adelaide encontra-se de férias, desde o início do mês o caso está sendo acompanhado pela promotora Armênia Cristina Santos. Segundo a assessoria de comunicação do MPE, na semana passada, testemunhas foram submetidas a uma acareação. Embora o resultado do procedimento não tenha sido revelado, uma fonte da Delegacia de Homicídios assegura: mais do que nunca, o desencontro de versões ficou evidenciado.

Para a delegada Inalda Cavalcante, titular da Homicídios, no entanto, as investigações estão encerradas. “O caso já foi para a Justiça e não temos como acompanhar”, disse na quinta-feira. Minimizando a relevância da acareação e demais diligências solicitadas pelo Ministério Público, ela diz que “tudo o que foi pedido foi feito, agora é com a Justiça”.

Apesar de encerradas no âmbito da polícia judiciária, as investigações devem prosseguir no Ministério Público. Não há indícios de que o caso esteja perto do fim.

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Escuta telefônica fragiliza acusação

Se os álibis lançam dúvida quanto à presença dos três soldados na cena do crime, outras provas circunstanciais contidas no inquérito também fragilizam a acusação. Uma delas refere-se à escuta telefônica autorizada pela Justiça. O Correio da Bahia teve acesso ao relatório da Superintendência de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública que analisa diálogos gravados de Santa Bárbara e outros policiais militares considerados suspeitos do crime. Um deles, o que prestou socorro a Ricardo e cuja identidade será preservada por orientação de advogados.

Embora mencionado na apresentação do relatório, José Roberto Santos não chegou a ter ligações telefônicas interceptadas _ o “grampo” pegou um homônimo de quem ele difere apenas no sobrenome. Adilson sequer é citado na operação. Considerada peça fundamental da investigação, a escuta não incrimina qualquer um dos três praças. “Durante esse período em que está sendo monitorado, o alvo não fez comentários sobre os crimes ora investigados”, registra o documento à página 3, em referência ao soldado Santa Bárbara, único dos acusados que teve o telefone “grampeado”.

Caso tivesse sido levada a sério, a escuta telefônica poderia ampliar a apuração. Afinal, dentre outros aspectos, sinaliza que o socorrista foi ao local atendendo a um chamado para o seu celular e não por solicitação da Central Única de Telecomunicações da Polícia (Centel). “Quem ligou para ele pode até não estar envolvido no crime, mas sabe mais do que os três PMs usados como bode expiatório”, destaca uma fonte da SSP, que teve acesso ao relatório.

A escuta também deixa entrever a possibilidade de tráfico de influência. No diálogo citado à página 6, um dos policiais que prestaram socorro às vítimas manifesta preocupação e é tranqüilizado pelo interlocutor, que aparece como HNI (homem não-identificado): “(...) mas não se preocupe que a gente vai ajeitar e o tenente falou que vai no Gerce para ajeitar as coisas (...)”. Outro trecho bastante contundente está na página 10. Na conversa, dois PMs, cujos nomes serão preservados, mencionam a presença de um major na cena do crime. Não há informações de que o oficial tenha sido arrolado no inquérito.

Defensora dos soldados Adilson, José Roberto e Santa Bárbara, a advogada Maristela Abreu esclarece que o fato de haver outros policiais e até oficiais PM envolvidos no caso não lhe diz respeito. “Isso é um assunto que cabe à autoridade policial investigar”, salienta. “O que me interessa é tornar pública a inocência dos meus clientes, o que já está provado nos autos”, assinala.

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Presidente de entidade aponta discriminação

Longe de representar uma exceção, a controversa prisão dos soldados Adilson, Santa Bárbara e José Roberto constitui uma regra no dia-a-dia dos policiais militares. Pelo menos na avaliação de Agnaldo Pinto de Souza, 46 anos, o soldado Pinto, presidente da Associação de Praças da Polícia Militar (APPM).

“Isso acontece todos os dias: mesmo sem chegar à autoria, a polícia judiciária sai prendendo a torto e a direito”, critica. “Se o cidadão é inocente, vai ter que arranjar provas para rebater as acusações mas, aí, o prejuízo já foi feito”, argumenta.
Pinto admite ser impossível garantir pela idoneidade de todo o efetivo da PM, uma massa heterogênea de aproximadamente 30 mil pessoas. Mas insiste que há uma desconfiança generalizada da sociedade em relação aos policiais militares. “O cidadão é execrado publicamente e depois, quando prova ser inocente, não recebe, sequer, um pedido de desculpas”.

Acompanhando de perto o caso dos soldados acusados da morte do artista circense Ricardo Matos, Pinto diz ter disponibilizado a assessoria jurídica da associação para representá-los em todas as instâncias judiciais. “Não defendo pessoas erradas”, sublinha. “Se eu tivesse dúvida quanto ao envolvimento deles, não estaria me expondo para defendê-los. O que fizeram com os três foi uma arbitrariedade, uma violência”, conclui.

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Pingue-Pongue/ANDRÉA D’OLIVEIRA

Última coordenadora do Grupo de Repressão aos Crimes de Extermínio (Gerce), a delegada Andréa d’Oliveira iniciou as investigações em torno dos assassinatos do acrobata Ricardo Matos e do assaltante Robson Pinho. Também coube a ela indiciar pelos crimes os soldados José Roberto dos Santos, Marco Antonio Carvalho Santa Bárbara e Adilson José da Silva Souza. Licenciada da polícia e atualmente exercendo o cargo de quinto membro do conselho deliberativo da Associação dos Delegados de Polícia da Bahia, para o qual foi eleita em outubro, ela falou por telefone, na quinta-feira, ao Correio da Bahia. Confira os principais trechos da conversa.

‘Saí convicta de que eles são os executores’

CORREIO DA BAHIA – Quando a senhora deixou o Gerce, o inquérito sobre a morte do artista circense já estava concluído?

ANDRÉA D’OLIVEIRA – Não. Quem deu prosseguimento foi a dra. Cleuba (a delegada plantonista Cleuba Regina Barros).

CB – A senhora sabia que o Ministério Público devolveu o inquérito por haver “contradições entre as partes”?

AO – Não, mas é normal que o Ministério Público devolva um inquérito e solicite novas diligências. Não há nada demais nisso.

CB – Com base em que a senhora indiciou os três soldados da 39ª Companhia como autores do crime?

AO – Nós tínhamos indícios da participação deles. Eles tiveram retrato falado produzido por testemunhas e foram reconhecidos em fotografias.

CB – Eles alegam inocência e apresentam álibis consistentes...

AO – É natural que um réu alegue inocência, é um direito dele.

CB – Durante as investigações, foi aventada a participação de algum oficial da PM?

AO – Não, não tivemos nenhuma evidência que nos levasse a acreditar nisso. O que se sabe é que há um quarto elemento, que seria o motorista.

CB – E que nunca foi localizado...

AO – Pelo menos até quando as investigações estavam comigo, não. Agora, tem uma coisa que é preciso dizer: a mídia atrapalhou as investigações.

CB – De que forma?

AO – Divulgando informações que terminaram prejudicando o trabalho, levando a antecipar as coisas...

CB – A senhora está dizendo que a divulgação na mídia levou a polícia a se precipitar?

AO – Precipitação, não. Mas se a mídia não tivesse divulgado o caso antes da hora, poderíamos maturar mais um pouco as investigações, esperar mais um pouco para prender os executores...

CB – Além do reconhecimento por parte de testemunhas, que outras evidências a senhora tinha do envolvimento dos soldados?

AO – As provas testemunhais eram muito consistentes.

CB – O exame de balística confirmou a participação deles?

AO – Até a minha saída o laudo não tinha chegado.

CB – Em algum momento, a senhora chegou a duvidar de que os soldados fossem os autores?
AO – Não. Eu saí de lá convicta de que eles são os executores.


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