quarta-feira, 11 de junho de 2008

Polícia liberta empregada de cárcere privado

Gabriela Silva viveu dos 11 aos 25 anos em regime de escravidão na casa de uma professora, em Itapuã
Marcelo Brandão - Correio da Bahia
Um caso chocante de trabalho escravo, agressões físicas e maus-tratos contra uma empregada doméstica baiana, descoberto após denúncia anônima à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República, em Brasília, veio à tona ontem, quando a jovem Gabriela de Jesus Silva, 25 anos, foi resgatada pela polícia. Ela contou que era obrigada a trabalhar sem remuneração, sofria constantes espancamentos e era mantida em cárcere privado, na casa da professora Maria Helena Silva, no bairro de Itapuã, onde morava desde que foi doada pelos pais, aos 11 anos.

“Eu apanhava de vassoura, de cinto, era enforcada, recebia beliscões e tapa no rosto de dona Maria Helena, do marido dela (José Carlos Carreiro Silva) e de suas duas filhas (Fabiane e Juliane)”, declarou Gabriela, chorando copiosamente. Conduzida à 12a Delegacia (Itapuã), a professora negou as acusações de agressão física e de maus-tratos, mas confessou que não pagava salário nem permitia que a jovem saísse de casa. A delegada Francineide Moura, titular da unidade, informou que vai apurar as denúncias durante inquérito policial, com previsão de conclusão em 30 dias.

Gabriela disse, em depoimento à polícia, que foi doada a Maria Helena pelos pais, quando ainda era criança. Ela não soube precisar a idade, mas acredita que tinha entre 11 e 14 anos à época. Contou que morava na zona rural do município Cansanção, distante 341km de Salvador, quando foi entregue pelo pai Godofredo à professora, que teria prometido cuidar bem dela e colocá-la para estudar. Mas o sonho de ir ao colégio durou pouco. Apesar de Maria Helena ser pedagoga e trabalhar em uma escola, Gabriela afirmou só ter freqüentado as aulas durante alguns dias. Em todo tempo que morou em Salvador, ela só viu a família uma vez, quando a patroa viajou para o interior e a levou.

Em vez de lidar com deveres de casa, Gabriela teve que se dedicar exclusivamente às tarefas domésticas. Trocando o lápis pela vassoura e o livro pelo esfregão, a jovem acabou analfabeta. Ela acrescenta que costumava acordar às 4h para preparar o café de uma das filhas da patroa, que saía cedo para trabalhar, e só dormia por volta da meia-noite. “Eu não estudava pela manhã porque tinha que fazer o almoço e pela noite, dona Helena não deixava eu ir porque dizia que era perigoso”.

Apesar de fazer todo serviço na casa, Gabriela afirma nunca ter recebido qualquer pagamento pelo trabalho – ganhava apenas comida, um colchonete para dormir no chão e roupas escolhidas e compradas pela patroa. “Ela nunca me pagou, só o filho dela, Júnior, que ficava com pena de mim e me dava umas moedas que eu juntava”, declarou.

Maria Helena tentou justificar, junto à delegada Francineide Moura, nunca ter pago salário a Gabriela porque ela não seria empregada e sim “uma filha”. Mas, apesar de morar em uma casa grande, com dois andares e jardim, a professora não tinha outra pessoa para cuidar dos serviços domésticos. Para agravar a situação, Gabriela conta que, por cerca de 14 anos, nunca saiu de casa sozinha, sequer para ia à esquina. “Eu tinha vontade de fazer amigos, de poder ir à praia e sair para passear, mas dona Helena nunca deixava”. Maria Helena alegou que não permitia que Gabriela saísse porque ela “sofre de problemas mentais”. A explicação soa contraditória, uma vez que era Gabriela quem tomava conta de uma neta da professora, de apenas 7 anos, enquanto todo mundo da casa saía para trabalhar e estudar.

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Agressões físicas e psicológicas

A jovem Gabriela de Jesus Silva também denunciou que sofreu maus-tratos, agressões físicas e psicológicas na casa da professora Maria Helena Silva. Ela contou que apanhou durante todo tempo em que viveu na residência, sofrendo agressões principalmente de Maria Helena, mas também do marido José Carlos e até das duas filhas adultas do casal, Juliane e Fabiane. A jovem isentou apenas Júnior, que teria pena dela.

“Ela dizia que eu era pobre e pobre tinha que sofrer mesmo e tinha que apanhar”, declarou Gabriela. Ela mostrou algumas cicatrizes pelo corpo, que teriam sido causadas pelas agressões. “Quem mais me batia era dona Helena, me batia de vassoura, puxava meus cabelos, me beliscava. Quando ela não estava trabalhando, me perseguia o tempo todo”. A professora negou as agressões, mas quando ficou frente a frente com Maria Helena, Gabriela, chorando sem parar, confirmou que apanhava constantemente.

Além dos maus-tratos físicos, Gabriela revelou que sofria ameaças e pressão psicológica. “Dona Helena dizia que se eu fugisse, ela iria me achar onde eu estivesse e que eu ia apanhar muito, porque ela tinha vários conhecidos na polícia”. A jovem relatou que arrumava a casa toda, mas, algumas vezes, quando os patrões chegavam, não gostavam do serviço e brigavam, batiam e a humilhavam muito.

“Dona Helena dizia que eu não servia para nada, dizia que só as filhas dela podiam estudar e que eu não tinha capacidade”, contou a jovem. Ela agradeceu a pessoa que denunciou o que vinha sofrendo, mas não soube dizer quem pode ter sido, já que o medo a impediu de pedir socorro. Quando questionada sobre o que pretendia fazer a partir de agora, Gabriela respondeu: “Quero ficar em Salvador para estudar, no futuro tentar fazer uma faculdade e mostrar para dona Helena que eu consigo. Eu quero tentar ser feliz, porque acho que todo mundo tem direito”.

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Psicóloga conferiu situação

Depois de receber a denúncia envolvendo Gabriela de Jesus Silva, a Secretaria de Políticas para Mulheres encaminhou o caso para o Ministério Público do Estado (MPE). O promotor Gildásio Galrão de Oliveira Neto, coordenador do núcleo determinou que a psicóloga do MPE, Bruna Mattos de Araújo, fosse à residência da professora Maria Helena Silva para fazer uma avaliação psicossocial de Gabriela. No dia 28 do mês passado, a psicóloga foi até a casa, situada na Travessa Princesa Isabel, em Itapuã, e se surpreendeu com o que encontrou. A jovem estava sozinha, trancada e tinha medo até de se aproximar do portão.

Após alguma resistência, Gabriela aceitou falar com a psicóloga, que considerou uma entrevista atípica, pelo fato de ter conversado com a possível vítima pela fresta do portão. Segundo Bruna, a jovem relatou as violências físicas e psicológicas que sofria, chorando durante o tempo todo e aparentando estar com medo de que alguém da casa chegasse.

A psicóloga concluiu que Gabriela estava passando por um grande sofrimento psicológico, apresentava baixa auto-estima, não sabia sequer sua idade e tinha perdido a noção de tempo, provavelmente em função do grande período de cárcere a que foi submetida. Ela relacionou estes problemas em um relatório de avaliação psicossocial encaminhado ao promotor Gildásio Neto.

O MP determinou que a 12a Delegacia investigasse o caso e a titular Francineide Moura solicitou à Justiça um mandado de busca e apreensão. Pouco depois das 7h30 de ontem, a delegada entrou na ampla casa da professora. Naquele horário, Gabriela já estava na cozinha, preparando o almoço. Apenas Maria Helena e o filho Júnior estavam no imóvel. Gabriela foi levada ao Departamento de Polícia Técnica (DPT), onde foi submetida a exame de lesões corporais. De acordo com o MP, a jovem será encaminhada provisoriamente a um abrigo público, até que sua família seja contatada e seu destino definido.

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TESTEMUNHAS

CINCO PESSOAS, pelo menos, procuraram espontaneamente a 12a Delegacia para prestar informações sobre o caso. No início da tarde, dois vizinhos defenderam a professora Maria Helena. Já no final do dia, três moradores da mesma rua foram à polícia para confirmar as denúncias contra ela. Até o fechamento desta edição, a delegada Francineide Moura ouvia testemunhas que confirmavam que Gabriela Silva ficava presa em casa e era maltratada pela família. A polícia descobriu ainda que a jovem foi matriculada no mesmo colégio em que a patroa trabalha, mas ainda não se sabe por que ela não freqüentava as aulas.

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Trabalho vinculado à exploração

Perla Ribeiro

Sem receber salário, tolhida do direito de ir e vir e vítima de agressões físicas e morais, Gabriela de Jesus Silva, 25 anos, é mais uma personagem que prova que a escravidão no Brasil não acabou. O termo não caracteriza mais as relações formais de trabalho. Porém estudiosos explicam que a prática persiste, mantendo atual o pensamento de Gilberto Freyre traduzido na obra Casa-grande e senzala. Contudo, na atualidade, a situação traz um agravante: se no passado a “casa-grande” dava uma conotação familiar às relações de serventia, hoje o trabalho se mantém exclusivamente sob a aura da exploração.

“O contraste estabelecido por Gilberto Freyre é que, apesar da violência, os senhores se preocupavam com os escravos. Já no contexto atual, as relações estão pautadas exclusivamente na exploração. Perdeu a dimensão de família”, avalia o historiador Guillermo Giucci, especialista na obra de Gilberto Freyre e doutor pela Universidade de Stanford. De acordo com ele, a escravidão continua existindo de forma perversa. No entanto, muitas vezes, a lei, que deveria proteger, não chega às instâncias reguladoras.

No caso das empregadas domésticas, o entrave é um só: como o ambiente de trabalho delas é a casa de alguém, as entidades fiscalizadoras ficam impedidas de atuar. “Enquanto as patroas colocam câmeras para observar a empregada, como o âmbito residencial é inviolável, não temos como fiscalizar as relações de trabalho”, lamenta a presidente da Federação Nacional das Empregadas Domésticas (Fenatrad), Creuza Maria de Oliveira.

Para ela, apesar de ter sido abolido há 120 anos, o trabalho escravo continua, e atinge até crianças e adolescentes. “Com a Lei do Ventre Livre, as crianças ficavam na casa-grande fazendo os trabalhos e hoje vemos este costume reproduzido na sociedade contemporânea. Este é só mais um caso que chega ao conhecimento público, mas há muitos outros no anonimato pelo país inteiro”, afirma Creuza.

“O trabalho doméstico remunerado é uma herança do tempo da escravidão, quando as negras trabalhavam de graça para os senhores. Hoje perdeu um pouco a imagem de que a empregada é quase uma propriedade da família, mas muitos direitos continuam sendo negados à categoria, considerada inferior”, avalia a pesquisadora de gênero e trabalho do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), Terezinha Gonçalves. Diante de um cenário onde não há regulamentação das condições de trabalho nem quem faça valer os direitos empregatícios, volta e meia, as empregadas domésticas são vítimas de patroas exploradoras.

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Emprego doméstico

NO BRASIL, as empregadas domésticas somam cerca de oito milhões e representam 10% da população economicamente ativa (PEA), número superior ao de operários da construção civil. Deste montante, 75% não possuem vínculo formal de trabalho.


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