quinta-feira, 16 de julho de 2009

Delação premiada ainda necessita de regulamentação, diz professor

 

Andréia Henriques - 12/07/2009 - 11h53

Um jogo sem regras não traz segurança alguma aos participantes. A analogia é feita pelo criminalista Maurício Zanoide de Moraes ao dizer que a lei de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, norma que instituiu a delação premiada e que completa 10 anos de vigência, necessita de urgente regulamentação.
Para o professor da Universidade de São Paulo, a ideia trazida com a lei de que a apuração de casos teria um novo instrumento “não vingou” devido a falta de regulamentação do instituto.
“A delação não é tão usada pela ausência de uma lei mais específica e detalhada. Um instituto desse, que não faz parte da tradição brasileira, precisava ser inserido de uma maneira mais elaborada,  racionalizada e discutida. Sem essas regras claras, gera-se uma insegurança tanto para o delator quanto para o juiz”, afirma em entrevista a Última Instância.
O especialista aponta que a aceitação da delação dentro da advocacia e do Judiciário ainda é restrita. “Existe um certo preconceito, uma indisposição, algo que desagrada exatamente pelo fato existir uma falta de confiança em como as coisas de fato acontecem.”
Maurício Zanoide diz ainda faltar uma vontade política de regulamentar todas as brechas da norma atual. “Uma coisa é certa: essa questão precisa ser enfrentada. Não adianta achar que o problema não existe”, ressalta o ex-presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Confira a entrevista, em que o doutor em direito processual penal fala ainda sobre a origem e criação da lei, as subjetividades que incidem no cálculo da pena e  questões éticas que envolvem a delação.
Última Instância - Em que contexto a lei que trata da proteção a vítimas e testemunhas, norma que instituiu a delação premiada, foi criada?
Maurício Zanoide de Moraes – Essa lei foi criada na época de José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso. Havia então pacotes de segurança pública e uma das ideias era criar condições para que se dessem mais garantias e seguranças para as vítimas e testemunhas —algo semelhante, mas muito incipiente, à política de proteção as testemunhas feita pelo governo federal dos Estados Unidos. Quando se discutia esse projeto de lei em Brasília, alguns juízes norte-americanos foram chamados para o debate e eles relataram o alto custo desse mecanismo.
Estávamos no final da década de 90, que se notabilizou pela inclusão —ainda algo muito incipiente, não existia uma estrutura jurídica bem formulada— de figuras parecidas com a delação premiada em várias leis. O instituto foi inserido na Lei de Crimes Hediondos, na Lei dos Crimes Financeiros, na Lei de Tóxicos então vigente e assim, se houvesse a delação, aquilo resultaria em uma redução de pena.
Última Instância - Qual a diferença entre a delação premiada que nós temos e a colaboração processual?
Maurício Zanoide de Moraes – Não é necessário apenas que haja colaboração por parte do acusado para que para a delação seja concluída, mas sim que ele se auto-incrimine, que seja ao final do processo condenado e que, depois de condenado, a pena seja reduzida. Em alguns casos excepcionais, que surgiram só depois da lei, ele pode ser isento de pena. Mas é necessário primeiro que haja um processo com a condenação da pessoa. A colaboração processual, mecanismo presente em outros países, é uma ajuda para que a pessoa não seja acusada, é um acordo feito entre Ministério Público e o investigado, anterior à instauração de um processo ou uma acusação.
Última Instância – Qual o principal equívoco cometido ao falar da delação premiada?
Maurício Zanoide de Moraes – Ao contrário do que se diz, ela não é um acordo com o Ministério Público ou com a Polícia. Só quem pode dar a resposta final no momento da sentença é o juiz —só ele pode reduzir pena e dizer se houve colaboração ou não. Dizer que existe um acordo é uma impropriedade jurídica.
Não existe proposição de acordo. Não posso propor um acordo para quem não pode cumpri-lo. O que há é uma postura declarada para a polícia ou para o MP de um investigado. No início da investigação, mostra-se a disposição em colaborar objetivando um eventual benefício final.
Última Instância – A Lei 9.807/99 trouxe quais novidades?
Maurício Zanoide de Moraes – Essa lei, verificando que a inclusão de figuras semelhantes à delação vinha acontecendo em alguns outros dispositivos legais, deu um pouco mais de consistência ao mecanismo. Essa é uma forma de proteção ao acusado. Existe a proteção à vítima, à testemunha, ao acusado e eventualmente até para o condenado. A ideia da lei era exatamente fornecer condições para que todas as pessoas atuassem na ação penal. Esse instituto foi colocado em três artigos da lei.
O espírito dela era começar a montar uma estrutura e oferecer legalmente condições para que os participantes pudessem ter suas vantagens, garantias, proteções e participações, tudo para a apuração dos fatos.
Essa era a ideia, mas ela “não vingou”, porque falta uma estrutura legal, uma regulamentação do instituto. Além disso, ele, que na maior parte das vezes se aplica apenas como uma redução de pena, não é vantajoso para o delator. No momento em que é feito o cálculo de uma eventual pena futura que venha a ser aplicada, o delator verifica que ele ainda vai cumprir pena no sistema carcerário, e pior, no mesmo presídio que o delatado. A lei de 1999 previu que ficasse em local separado.
Última Instância – Porque o instituto da delação ainda é pouco utilizado no Brasil?
Maurício Zanoide de Moraes – Exatamente pela falta de uma lei mais específica e detalhada. Um instituto desse, que não faz parte da tradição brasileira, precisava ser inserido de uma maneira mais elaborada,  racionalizada e discutida. Por exemplo, poderiam ter sido estabelecidas formas de colaboração pré-processual, garantindo que a pessoa não vai ser acusada. Se eventualmente a ação penal tiver que existir, que se estabeleça qual é o papel do delator e o que ele tem que levar de contribuição. Deve ser possível estabelecer se a contribuição que o delator levou ao caso foi realmente útil e efetiva.
Sem essas regras claras, gera-se uma insegurança tanto para o delator quanto para o juiz. O magistrado, porque pode ser “obrigado” a dar o benefício para, por exemplo, alguém que falou algo já sabido ou que inevitavelmente seria descoberto. E insegurança do delator por ficar na situação de ter confessado e imaginado que teria benefícios. Essa insegurança desestimula o acordo.
Última Instância – Após 10 anos de vigência da lei que institui a delação premiada é possível dizer que o instrumento é inócuo, como previsto pelos próprios críticos do mecanismo?
Maurício Zanoide de Moraes – Posso dizer com segurança que ele é pouco utilizado e seria muito melhor aproveitado se existisse uma regulamentação correta. Ele seguramente seria mais eficaz. Hoje as falhas são maiores do que uma coisa que poderia ser boa. A delação é um momento de crise, no sentido de tensão, de momento de mudança de postura —a pessoa de “acusada” passa a “acusador”. A apuração dos fatos e os envolvidos nos processos —juiz, MP e polícia— têm muito mais a ganhar com a regulamentação desse instituto.
Quem não quer regulamentação disso? Só as que arbitrariamente e de maneira ilegal deturpam o instituto e os que são contra para mascarar determinados crimes.
Última Instância – A principal crítica ao instituto da delação reside em uma discussão ética?
Maurício Zanoide de Moraes – A delação tem na sua essência uma questão ética a ser resolvida: o estado vai compactuar com um criminoso que resolve trair os companheiros? Essa é a crítica primeira, por ser de premissa. È claro que olhado de um determinado ponto, a delação não é ética. Por outro lado, ela se justifica. A questão é: esse impasse é intransponível, porque se eu leva-lo a uma questão ética elevada eu não aceito a delação como premissa.
Se eu olhar apenas por meio de questões éticas, a delação irá se tornar quase uma arbitrariedade, uma tortura psicológica para se obter a confissão, uma pressão psíquica que se faz sobre o réu. Os poderes arbitrários e violentos do Estado acabam prevalecendo sobre a dignidade da pessoa
Mas é necessário equilibrar esses dois extremos, ofender o mínimo possível a ética e ao mesmo tempo assegurar que réus, acusados, polícia, Ministério Público e a Justiça sejam beneficiados.
É preciso mostrar que é possível se fazer uma lei com isso. O que falta é uma vontade política de regulamentar todas as brechas da norma atual. A vontade política nasce dos operadores do direito (juiz promotor, delegado, advogado, acusado, acusador). Os que são contrários, são mal intencionados. E o perigo é que, não havendo regulamentação, algumas pessoas têm uma margem de atuação muito ampla.
Última Instância – Como a advocacia e o Judiciário percebem hoje o mecanismo da delação? Existe já uma aceitação ou ainda é um mecanismo rechaçado?
Maurício Zanoide de Moraes – Não me sinto capaz de reproduzir e ser porta-voz do espírito da advocacia, da magistratura e do MP. Mas, seja como professor, advogado ou palestrante, percebo que existe um certo preconceito, desconfiança, uma indisposição, algo que desagrada exatamente pelo fato existir uma falta de confiança em como as coisas acontecem. O delator é apontado pelos demais como uma pessoa sem credibilidade, um mentiroso. E visto pelos órgãos da acusação como uma tábua de salvação —a mais larga e mais forte. Eles muitas vezes apoiam tudo naquilo, é como se bastasse a delação. O juiz vê o instrumento com uma certa indisposição, por se sentir um pouco inseguro, porque não tem parâmetro nenhum. Essa desconfiança, falta de hábito e indisposição vem da falta de limite e referência em alguns pontos que estabeleçam premissas mais ou menos seguras.
Última Instância – A contribuição da delação deve ser muito grande para que sejam dados os efetivos benefícios?
Maurício Zanoide de Moraes – O que é “grande”? Essa é uma situação subjetiva que não está regulamentada. Uma indicação que existe é “indicar a localização da vítima”. Mas e quando o crime não tem vítima? Na época do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos chegou-se a discutir propostas e estudos —para a constitucionalidade e a viabilidade de regulamentar as mudanças. Mas as discussões pararam.
Uma coisa é certa: essa questão precisa ser enfrentada. Não adianta achar que o problema não existe porque acabamos fugindo dele. Mesmo que se chegue à conclusão de que não se pode ter delação porque ela é inconstitucional, mas tudo fruto de um debate. E se forem constitucionais, é preciso regulamentar.
Última Instância – De que maneira a insegurança da falta de regras afeta o cálculo da pena?
Maurício Zanoide de Moraes – A figura da delação premiada, que não tem base nenhuma, diz: redução de 1/3 a dois terços, redução até dois terços, de um terço a metade. E o juiz, que cumpre regra, aplica a redução como entender, ao contrário de todo o cálculo da pena, medido com fundamento em estritas regras. Ou seja, o magistrado aplica uma redução sem o menor parâmetro. Assim, o perigo é que a pena não fique proporcional ao delito (na verdade a pena deveria ficar proporcional à conduta). É difícil o juiz explicar porque reduziu o que reduziu. A defesa pode alegar que a redução da pena foi mínima e a acusação pode falar que a punição sequer deveria ter sido diminuída. Toda vez que se tem um acréscimo ou redução de pena, sem uma regulamentação detalhada, existe uma margem de subjetividade, em que se corre o risco muito grande de afetar a proporcionalidade da medida.
Última Instância – Existe uma tendência de que o instrumento da delação seja mais usado? 
Maurício Zanoide de Moraes – É necessário que o mecanismo seja regulamentado. Por uma razão muito simples: se o jogo que você me convida a participar não tem regras, eu não me sinto seguro o suficiente para participar dele. Seja eu juiz, promotor, advogado, acusado ou polícia. Só regulamentado esse instituto funcionará mais e melhor.

 

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