terça-feira, 23 de junho de 2009

Impunidade: uma análise da jurisprudência após um ano de vigência da Lei Seca

 

Aldo de Campos Costa - 23/06/2009

Luis Cláudio envolveu-se em grave acidente automobilístico em uma localidade do litoral paranaense. Os policiais militares que atenderam o sinistro constataram que ele dirigia seu carro sob visível estado de embriaguez alcóolica, inalando forte odor etílico, com dificuldades para andar, falar e se coordenar. Em razão disso, foi conduzido à delegacia de polícia local, onde foi lavrado o respectivo auto de prisão em flagrante[1].

Em juízo, Luís Cláudio teve sua punibilidade extinta monocraticamente com relação ao crime do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, já que uma elementar daquele tipo penal, qual seja, a concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas não fora comprovada pelo meio próprio: um exame de sangue ou de nível de alcoolemia.

João dirigia sob a influência de álcool a sua motocicleta em uma rodovia do interior do Rio Grande do Sul, quando não aceitou a ordem de parada de um policial militar e fugiu do local, imprimindo alta velocidade no veículo e efetuando manobras bruscas, com o que colocou em risco a incolumidade das pessoas que transitavam ou estavam nas proximidades daquela estrada[2].

A magistrada que recebeu a denúncia entendeu por rejeitá-la parcialmente em relação ao artigo 306 da Lei 9.503/97. Inconformado, o Ministério Público apelou da decisão. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entretanto, manteve a decisão monocrática, por não ver justa causa para a subsistência daquela ação penal diante da inexistência, na hipótese, de notícia da realização de prova técnica hábil à demonstração da materialidade delitiva.

Em Minas Gerais, o veículo que era conduzido Edinilson foi abordado por viaturas da polícia militar. Submetido a exame clínico, soube-se posteriormente que se encontrava sob a influência de álcool, expondo terceiros a dano potencial[3].

Edinilson foi condenado como incurso nas sanções do artigo 306 da Lei 9.503/97, à pena de 10 meses e 10 dias de detenção, no regime aberto, além do pagamento de 16 dias-multa. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, todavia, o absolveu em segunda instância, sob a justificativa de não ter sido observada no caso concreto a indispensável prova técnica visando a demonstrar que ele estava conduzindo veículo sob efeito de álcool na exata concentração determinada pela “Lei Seca”.

Também sob a influência de álcool, Wallace ultrapassou perigosamente dois automóveis pela direita em uma rodovia de Santa Catarina. Após efetuar a ultrapassagem de alto risco, foi abordado por dois soldados da polícia militar que o conduziram até o pronto socorro mais próximo, onde foi constatada sua excessiva embriaguez pela médica de plantão[4].

A sentença que condenou Wallace à pena de um ano de detenção e ao pagamento de 30 dias-multa por infração ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, foi posteriormente reformada pelo Tribunal Estadual, que o absolveu da prática daquele crime com fulcro no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal.

É que muito embora existisse nos autos o depoimento dos policiais militares afirmando que ele se encontrava em estado de embriaguez, aliado, ainda, ao atestado médico que indicou sinais da ingestão excessiva de álcool e à confissão do próprio acusado de que ingeriu bebida alcoólica antes de tomar a direção do veículo automotor, não havia como inferir a dosagem da substância para a responsabilização do crime previsto no artigo 306 da Lei 11.705/08.

No Distrito Federal, Junio dirigia sob influência de bebida alcoólica, com acentuada imprudência e velocidade superior à máxima permitida nas proximidades do viaduto de acesso a uma cidade-satélite. Nestas condições, perdeu o controle do carro, derrapou, transpôs o meio-fio, entrou no canteiro central, passou para a pista de sentido contrário e colidiu com dois veículos, sendo que um deles era ocupado por dois menores, vindo um deles a óbito no local do acidente. Inicialmente condenado a 2 anos e 10 meses de detenção por infringir o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, Junio foi absolvido em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, simplesmente porque não foi submetido ao bafômetro[5].

Osmar não precisou esperar tanto tempo, pois já foi absolvido logo na primeira instância da acusação de praticar o delito previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Isso, mesmo tendo causado um grave acidente de trânsito sob a influência de substância ebriante.

O Ministério Público do Estado de São Paulo, entretanto, insistiu em sua condenação. Mas o Tribunal de Justiça paulista negou provimento ao recurso ministerial e manteve a absolvição daquele condutor. Nesse caso também não foi realizado o exame de sangue e nem o teste do bafômetro, somente o exame clínico do Instituto Médico Legal, insuficiente para comprovar tecnicamente a concentração mínima de álcool por litro de sangue, de seis decigramas, ou três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões de Osmar.

Elisete, que vive no Rio de Janeiro, não terá, entretanto, a mesma sorte de Luis Cláudio, João, Edinilson, Wallace, Junio e Osmar, apesar de ter sido presa em flagrante em uma situação objetivamente semelhante aos demais: ela aceitou submeter-se ao teste do etilômetro quando lhe foi determinado que o fizesse, sem se rebelar em face disto, nem se negar a realizá-lo, logo após ter saído de um shopping, quando foi parada por uma “blitz”, oportunidade em que foi aferida a presença de concentração de álcool superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido de seus pulmões.

“O direito não socorre àqueles que dormem”, exprimiu-se em tom desalentoso o relator do habeas corpus que a defesa técnica de Elisete impetrou na vã tentativa de safá-la de uma iminente condenação pela prática do delito previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro[6], ao argumento de que vige mandamento constitucional segundo o qual ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo.

Todos esses exemplos da jurisprudência de nossos tribunais, produzidos ao longo de um ano de vigência da chamada “Lei Seca” prestam-se para demonstrar o acerto da tese de que as alterações produzidas pelo advento da Lei 11.

705/08 frustraram a finalidade de estabelecer alcoolemia zero e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool, estampada na ementa daquele diploma legal[7].

A rigor, a “Lei Seca” vem funcionando como uma norma proibitiva que acaba se tornando permissiva na prática, uma vez que a imposição ou a proibição que propõe não provoca o estímulo volitivo esperado nos seus destinatários —muito pelo contrário.

Revelou-se correta, ainda, a previsão de que a nova lei retroage favoravelmente aos que não forem submetidos aos únicos exames capazes de aferir a exata constatação de nível de alcoolemia para a consumação do tipo penal estabelecida pela circunstância elementar antes não preceituada pelo artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro[8].

Para confirmar essa constatação, basta notar que os episódios acima relatados ocorreram em datas pretéritas à entrada em vigor da Lei 11.705/08 (o caso de Santa Catarina, por exemplo, ocorreu em 2004).Cuida-se de um caso típico de novatio legis in mellius, que retroage para tornar a conduta do motorista atípica, nos exatos termos do que estatuem o artigo 5°, XL, da Constituição Federal e o artigo 2°, parágrafo único, do Código Penal.

O aumento em todo o país do número de prisões de motoristas que dirigem alcoolizados, por isso mesmo, não chega a impressionar, já que a quantidade de pessoas presas, conforme vimos, não implica necessariamente no incremento das punições. O número de vidas poupadas também não pode ser apontado como resultado necessário daquela circunstância.

O que ocorre é que existe correlação, mas não causalidade entre estas variáveis, que parecem estar muito mais relacionadas ao incremento da fiscalização em determinadas localidades do que à efetiva aplicação da legislação penal. A fiscalização, como variável externa, faz com que todos os aumentos (prisões, número de vidas) estejam correlacionados de alguma forma entre si, sem que nenhum deles provoque necessariamente o outro. Seja como for, o certo é que a realidade jurisprudencial demonstra inequivocamente que após o seu primeiro aniversário, a “lei seca” já não possui mais vigência fática. Victor Hugo, aliás, parece ter se referido justamente a essas hipóteses quando dizia que “amadurecer e morrer é quase a mesma palavra”.

http://ultimainstancia.uol.com.br/new_site/artigos_ver.php

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