segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Imprensa e casos policias: do crime da mala aos pré-julgamentos

Andréia Henriques
Última Instância publica, neste Carnaval, uma pequena série de três textos sobre crimes famosos do século passado. O primeiro, neste domingo (22/2), trata do episódio que ficou conhecido como o "crime da mala", em 1928. Amanhã será a vez do chamado "Bandido da Luz Vermelha", eternizado no filme de Rogério Sganzerla, e na terça, o "caso da rua Cuba", nosso quase-mistério do quarto fechado.
Muito antes de casos como o sequestro da adolescente Eloá Pimentel por seu ex-namorado, Lindemberg Alves, a morte da menina Isabella Nardoni, o assassinato dos Richthofen pela filha do casal, Suzane, ou ainda os crimes cometidos pelo jornalista Pimenta Neves e pelo ex-cirurgião Farah Jorge Farah ocuparem o noticiário do país, outros episódios fizeram história e entraram para a galeria de crimes “famosos” que ilustram a crônica policial brasileira.

“A mala trágica”. Essa era a manchete estampada em jornais da época de um acontecimento que assustou a sociedade paulistana quando violência e crimes bárbaros não eram comumente noticiados pelos veículos de comunicação. Em 1928, a polícia deparava-se com “o crime da mala”, um dos mais antigos casos populares do Brasil.

Em outubro daquele ano, no Porto de Santos, foi encontrada uma grande mala de couro com destino a Bordeaux, na França, que seria embarcada em um navio. No entanto, o objeto encobria o assassinato mais expressivo e de grande repercussão da época: dentro da mala havia o corpo mutilado e já em estado de putrefação de uma jovem de 21 anos.

Imprensa e polícia se apressaram na tarefa de investigar o caso, que chocava a população por um outro detalhe: a moça estava grávida de seis meses. Depois de a polícia rastrear a origem da mala, descobriu-se que Maria Mercedes Féa havia sido estrangulada por seu marido, o imigrante italiano Giuseppe Pistone.

As versões para o caso foram muitas. A que ficou para a história foi a que, após uma briga por causa de dinheiro e por supostamente chegar a casa e encontrar um homem na cama de sua mulher, Pistone matou Maria e depois de alguns dias resolveu colocá-la em uma mala.

A morte ocorreu 20 anos após um outro crime da mala, igualmente bárbaro e que mexeu com a população de São Paulo. O comerciante sírio Miguel Trad, em 1908, esquartejou seu sócio Elias Farah e também ocultou o corpo em uma grande mala. O motivo, jamais comprovado, seria o romance entre Farah e a esposa de Michel.

O italiano Pistone foi condenado a 31 anos de prisão por homicídio e ocultação de cadáver. Cumpriu 22 anos de pena, foi solto em 1944 e morreu 12 anos depois. Maria Féa foi sepultada em Santos e teve o túmulo transformado em uma espécie de capela, que, mesmo em menor escala, ainda é atração de roteiro de peregrinação religiosa, passados mais de 80 anos do caso.

Tragédia, mistério, elementos passionais, sangue, crime, adultério e sensacionalismo. Alguns dos ingredientes comuns da crônica policial e que hoje são corriqueiros nos noticiários da imprensa marcavam a inauguração, com o “crime da mala”, da cobertura de casos policiais de grande repercussão.

Tempo da mídia
Se em 1928 começava a se esboçar o modo como a imprensa passaria a cobrir crimes populares, hoje especialistas discutem os limites éticos e as consequências que a cobertura massiva da mídia sobre crimes chocantes traz para o andamento dos processos criminais.

Para o presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Sérgio Mazina Martins, há dois tempos diferentes envolvidos em grandes crimes: o tempo da mídia e o da Justiça. “O tempo da Justiça é muito mais demorado. A possibilidade de a Justiça cometer erros, embora também os cometa, é relativamente menor”, afirma.

Segundo ele, embora não seja possível generalizar, são cada vez mais frequentes episódios em que simples investigados são pré-julgados. “Pessoas que tiveram suas vidas destruídas em pouco dias ou em algumas horas e depois se descobriu que não havia provas para que ela fosse considerada culpada”, ressalta o especialista em direito penal.

Um dos casos mais emblemáticos é a série de reportagens que em 1994 acusou os donos da Escola de Educação Infantil Base, em São Paulo, de terem cometido abuso sexual contra crianças que lá estudavam. Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Mauricio Alvarenga e Paula Milhim Alvarenga sofreram da mídia diversas acusações, que mais tarde se mostraram inverídicas. Até hoje, diversos veículos ainda lutam contra o pagamento de indenizações aos donos da escola.

O presidente do IBCCrim destaca ainda que é preciso ter cuidado para que a mídia não julgue antes mesmo da defesa ou exponha a intimidade e a privacidade das pessoas envolvidas em um processo de forma desnecessária.

É o caso da recente entrevista feita pela Rede TV! com a adolescente Eloá e com Lindemberg Alves, personagens de um sequestro Santo André que durou mais de cem horas e terminou com a morte da menina.

As entrevistas foram ao ar no programa “A Tarde é Sua”, da apresentadora Sônia Abrão. Segundo o Ministério Público Federal em São Paulo, que em dezembro de 2008, pediu que a emissora pague indenização de R$ 1,5 milhão pela exibição, as conversas, uma ao vivo e outra gravada, interferiram na atividade policial e colocaram em risco a vida da adolescente e dos demais envolvidos.

Para o MPF, o drama pessoal vivenciado pelos entrevistados foi transmitido sem nenhum respeito pela dor humana e colocou em segundo plano os direitos à privacidade, à imagem e à intimidade estabelecidos na Constituição.

A superexposição de grandes crimes pode ter um grande impacto não apenas na formação da opinião pública. Essa é a opinião da presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Flávia Rahal. “Existe uma pré-disposição na cobertura jornalística em se estabelecer culpas, desvendar os eventuais mistérios do assunto, de forma a criar uma pressão para que a solução do caso venha antes da solução jurídica, o que ocorre muitas vezes de forma precipitada”, defende.

Ela ressalta, no entanto, que houve uma melhora significativa da grande imprensa em cobrir casos criminais. Segundo ela, muitos veículos passaram a ter uma preocupação e um cuidado com a forma de tratar acusados ou investigados.

Para Flávia, a opinião pública é quem aponta o dedo e a mídia repercute tais entendimentos que muitas vezes antecedem a decisão final.

Espetáculo
O advogado especialista em direito penal Sérgio Rosenthal afirma que a forma com que as autoridades incumbidas na investigação policial trazem os fatos ao conhecimento da imprensa é equivocada. “O sensacionalismo da cobertura da mídia é provocado pelas autoridades. Cidadãos investigados acabam sendo exibidos como se fossem condenados e culpados, o que afronta o direito de defesa e o princípio constitucional de que ninguém será considerado culpado antes da decisão final”, diz.

Para ele, a mídia sempre divulgou o combate ao crime de forma mais equilibrada. Mas, a partir dessa nova postura, principalmente da Polícia Federal na divulgação de mega-operações, que esses assuntos passaram a ser tratados como espetáculo.

“Toda a sociedade deseja uma Justiça célere. Mas no Brasil ou em qualquer país do mundo, só se pode fazer Justiça por meio de um processo, que não é uma mera formalidade. O processo é exatamente o meio pelo qual se apurará a responsabilidade do cidadão e a verdade”, destaca.

Rosenthal lembra ainda que quando um cidadão é mostrado pela polícia como culpado, uma futura absolvição da Justiça irá parecer injusta e não o resultado de um processo. Para o especialista, muitas vezes os advogados são vistos como inimigos da verdade, quando, ao contrário, atuam como um escudo para proteger os cidadãos de distorções ou condenações antecipadas e erradas.

Domingo, 22 de fevereiro de 2009

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